Em conversa com o Dr. Luiz Carlos Piazzetta, o mesmo me contou que está preparando um livro, na verdade, praticamente concluído, com crônicas e relatos de fatos e casos acontecidos e vivenciados por ele durante sua vida como médico, especialmente quando trabalhou em Barão de Cotegipe, mas, também uma recordação daqueles acontecidos em Erechim. 

"Alguns desses relatos são casos médicos que, por serem extraordinários para época e, acredito ainda o são nos dias de hoje, conforme declarações de alguns colegas que já os leram, e que me incentivaram em publicá-los. Outros são acontecimentos alegres, muitos até jocosos, que achei interessante incluir", conta o médico. O livro, cujo título é "Memórias de um Médico no Interior Gaúcho”, terá 400 páginas.

Abaixo, com exclusividade,  um dos trechos do livro sobre a importância do cônego Pollon para o desenvolvimento de Cotegipe.  



Um Grande Líder




Cônego Stanislau Pollon e Dr. Luiz Carlos Piazzetta

"A longa permanência do cônego Stanislau Pollon em Cotegipe, como pároco da cidade, foi de fundamental importância para o destino daquela distante vila, distrito de Erechim. Realmente ele foi o motor propulsor que conseguiu trazer o progresso para a antiga Floresta, ex-distrito de Paiol Grande e depois Erechim, criando as condições necessárias para a sua emancipação politica, transformando-se então no município de Barão de Cotegipe.
 A sua inconteste liderança ia muito além das atividades puramente religiosas e paroquiais, estas desempenhadas com competência , amor e dedicação, para se estender para inúmeras outras áreas, tais como a saúde, a educação, a política, o bem estar social e o lazer. No tempo em que ainda não existia energia elétrica na cidade, foi o incentivador e criador de uma pequena, mas eficiente usina de força, com gerador movido por queda de água, que naquela época dava conta para o atendimento, ainda que precário, do município de Cotegipe, além de outros vizinhos. Conheci o local onde ficava a antiga represa logo após a minha chegada em Barão. Havia um rio de águas muito limpas e o local era muito arborizado, com frondosas árvores nativas. Ali nos dias quentes de verão ele gostava de ir nadar e tomar banho de rio. Fui até lá em sua companhia por diversas vezes, ocasiões em que ele se transformava, divertindo-se muito nadando naquela água fresca e cristalina do açude. 

Ali, só de calção de banho ele parecia uma verdadeira criança, ria muito e brincava bastante.Retornávamos para casa sempre no fim da tarde. Incentivou e, com o seu trabalho, criou o novo hospital São Vicente de Paulo, uma construção bastante grande para a sua época, trazendo de Curitiba, para administrá-lo, as Irmãs de Caridade da Ordem das Vicentinas. Também foi através da sua visão e liderança que foi criado o Colégio Cristo Rei, entidade de ensino médio para alunos de ambos os sexos. Também o conceituado internato, que ali funcionou por muitos anos, ambos administrados pela mesma ordem das Irmãs Vicentinas. 

Foi uma escola de referência por onde passaram centenas e centenas de jovens provenientes de todo o Alto Uruguai, e mesmo de mais de longe, como de alguns municípios de Santa Catarina. Idealizou e conseguiu construir a grande Igreja de Nossa Senhora do Rosário, uma imensa construção, mesmo para os padrões atuais. Com localização bem central, no fim da avenida principal da cidade, com as suas duas altas torres, uma com relógios para os quatro lados, que marcavam e anunciavam pachorramente as horas com fortes badaladas.  No seu interior abrigava uma comprida nave, mobiliada por dezenas de compridos bancos de madeira de lei. Também devesse a ele a criação do enorme ginásio de esportes do município, construído em um amplo terreno pertencente a própria paróquia, bem ao lado da Igreja Matriz, o qual logo se tornou o espaço principal para grandes festas e apresentações culturais na cidade, além de ser um concorrido campo de futebol de salão. 

De personalidade muito forte e centralizadora, conquistou o respeito e a amizade da maioria da população, mas, como todo líder, também a antipatia de alguns poucos invejosos do seu carisma e sucesso empreendedor. Batia sempre de frente e as vezes pode ter contrariado interesses de pessoas importantes do local. Desde a minha chegada na cidade, em 1º de Setembro de 1969, tive nele um grande amigo e aliado, tanto social como profissionalmente. Sempre foi um apoiador entusiasta do meu trabalho que desempenhava no hospital. Por vezes fiz o papel de orientador nos assuntos financeiros e em muitos outros de cunho profissional. 

Quando cheguei, eu era ainda solteiro e não conhecia quase ninguém, foi ele a pessoa com quem mais me relacionei, especialmente, naqueles primeiros anos na cidade. Com pontualidade, uma vez por semana, sempre às 20 horas, logo após o término dos nossos trabalhos diários, ele me esperava para conversar ou jogar algum jogo, na sua residência, a espaçosa Casa Canônica, construção sólida de dois pisos e diversos aposentos. O seu jogo favorito, não recordo mais o nome,  era uma espécie de arremesso de pequenos discos, nas cores verde e vermelho, feitos de madeira muito dura e pesada, contra as peças do adversário, que também tinham a mesma forma, tendo como objetivo jogá-las em uma espécie de pequena caçapa, localizada em ambas as pontas, no final da mesa de jogo. 

Aprendi com facilidade e sempre jogávamos algumas partidas enquanto conversávamos e depois tomávamos uma xícara de chá acompanhada com bolachas e bolo preparados pela eficiente e atenta perpétua. As vezes também apreciávamos um cálice de algum licor caseiro, que o cônego porventura tivesse ganho de um paroquiano. Acompanhei a fase final da construção e acabamento do ginásio de esportes, especialmente a compra da madeira de lei para o piso, se não me engano ele optou pelo Tarumã, uma madeira muito dura e pesada. 

Lembro da sua felicidade quando o pavilhão ficou pronto, mas ainda sem o acabamento final. Nesta fase ele já pode alugar alguns dos espaços que ficavam ao nível da avenida, embaixo da quadra de esportes. Foi ali, em uma dessas salas, que instalamos o recém conquistado Posto de Saúde, e onde funcionou por vários anos até que o  governo estadual construísse o seu prédio próprio, próximo ao ginásio estadual.  Recordo com saudades que, por quase dois anos, todos os domingos, sempre depois da última missa matinal na igreja matriz, por volta das dez e trinta, ele passava lá pelo hospital para me pegar, com a sua velha e usada caminhonete marrom, para irmos almoçar em alguma capela que naquele domingo estava realizando a sua festa anual pelo dia do padroeiro. 

Para mim essas saídas dominicais eram muito relaxantes após uma dura semana enclausurado no hospital, mergulhado em muito trabalho e repleto de responsabilidades. Em todas essas ocasiões, logo ao chegarmos e assim que terminava a missa nessas capelas, ele fazia questão de me apresentar oficialmente para a comunidade local ali reunida. Esta sua espontânea atitude muito me auxiliou para conhecer melhor o povo de Cotegipe e também ser por eles conhecido. Durante o trajeto das viagens para essas capelas, algumas localizadas até bem longe da sede do município, tínhamos a oportunidade de conversar à sós, sempre muito francamente,  sobre todos os tipos de assuntos. Essas viagens também serviram para consolidar ainda mais a amizade que nos unia. 

Lembro que em um sábado, logo cedo, pela manhã recebi um convite para acompanhá-lo em uma pequena viagem. Tratava-se de um jantar na casa de uns seus parentes, que moravam em Áurea, então distrito do município de Gaurama. Devido as precárias condições das estradas, a viagem se tornava demorada, mesmo para a época,  toda feita por uma estrada de chão batido, revestida por um cascalho que se esfarelava facilmente, conhecido em toda a região como “tabatinga”. Naquela noite, tal como em todas as outras residencias do distrito de Áurea, na casa dos familiares do cônego Pollon também estava faltando energia elétrica. 

A casa era iluminada precariamente com uma luz bem fraca, proveniente de dois pequenos lampiões à querosene, pendurados no teto por meio de grandes pregos. Foi lá, naquela pequena peça, sala e cozinha ao mesmo tempo, muito mal iluminada, que ele, com a cumplicidade dos seus parentes, tentou me pregar uma peça. O prato principal para o jantar era uma suculenta sopa, de cor um pouco escura, com macarrão largo tipo “tagliatelli”, feito em casa. Conversavam muito entre eles e quase só falavam em polonês. 

Por vezes lembravam que eu não conhecia absolutamente nada daquela língua e voltavam a falar em português. Educadamente sempre que se dirigiam à mim falavam em português. Ninguém me explicou do que consistia aquele prato e nem que se tratava de uma conhecida especialidade da cozinha polonesa. Pela cor escura, pensei até que fosse sopa de feijão, talvez um tipo de minestra. Eu também ainda não tivera tempo para conhecer os costumes e as tradições polonesas para poder antecipar aonde eles queriam chegar. 

Enquanto eu comia, podia perceber nitidamente que, tanto o cônego como os seus familiares, por vezes me fixavam atentamente e trocavam olhares entre eles. Uma vez terminado o jantar, o cônego, com aquele seu característico sorriso malandro nos lábios, perguntou se eu havia gostado daquele prato típico polonês, ao que, prontamente, respondi afirmativamente, tanto que o tinha repetido duas vezes. Ainda com aquele seu largo sorriso, ele e seus familiares,  explicaram que aquele prato se chamava czarnina e era feito com sangue de pato, daí aquela sua coloração bastante escura. A brincadeira consistia que, muitas pessoas,  não pertencentes a etnia polonesa, ficavam com nojo daquela sopa e recusavam-se a prová-la. 

Todos eles ficaram muito felizes, especialmente a dona da casa, que também tinha sido a cozinheira, pelo fato que eu, de origem italiana, tivesse gostado e saboreado aquele seu prato típico."

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